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Notícia de hum caso acontecido em Castello de Vide

por Pedro Sá

Em 24 de Março de 1757 o quotidiano da vila de Castelo de Vide, era sacudido pelo insólito. Nesse dia, deu-se o nascimento de um menino que trazia dentro de si um outro menino, sendo assim portador de quatro braços e quatro pernas. Procurado o registo de baptismo da criança, a quem foi dado o nome de Francisco, ficamos a saber que era filho de Manuel Dias Junceiro e de Ana Maria, pertencentes à freguesia de Santa Maria da Devesa. Dada a anormalidade do caso, também o registo de baptismo não é habitual. Indica que este acto ocorreu em casa, “por nascer com demonstrações de durar pouco, pois do ventre do mesmo menino pendia outro menino com as mãos e pés, e membro viril livres e a cabeça oculta no ventre do menino perfeito com algum conhecimento externo sobre o qual conferi o baptismo sub condicione e pus os santos óleos solenemente em o dia trinta e um de Março do dito ano.” O baptismo foi celebrado pelo Ecónomo da Igreja, Padre João Baptista Roxo.

Este caso foi descrito por A.J.R., num folheto intitulado “Noticia de hum caso acontecido em Castello de Vide Aos 24 de Março deste presente anno de 1757 Referido em huma Carta, que daquella Praça se mandou a esta Cidade, à qual se accrescentão algumas reflexoens Fisico-Historicas” publicado em  1757.

Como era previsível, o menino não sobreviveu muito tempo. O registo do óbito indica que em 22 de Abril  “faleceu Francisco, menor de um mês, filho de  Manuel Dias Junceiro e de Ana Maria, sepultado no Convento”. Há aqui uma discrepância no registo da data do falecimento, uma vez que o folheto refere 20 de Abril.

Pelos livros de pagamento do imposto dos 4 e ½, depositados no Arquivo Histórico Municipal de Castelo de Vide, encontramos dois contribuintes com o nome de Manuel Dias Junceiro. Um deles, morador na Rua da Cruz, em 1756 é registado como jornaleiro, pagando de maneio 60 reis e aposentado em 1758. O livro de 1757 não foi localizado. Um outro, morador na Rua Miguel Ferreira é colectado, nos dois anos referidos, como “oficial”, e onerado naquela mesma quantia.

Ao longo do tempo, estes casos anormais foram sendo interpretados ora como reflectindo a ira de Deus, ou a Sua omnipotência, ora como transgressão natural, como aviso divino, como acção do diabo, como criatividade, exuberância ou maravilha da Natureza, mas houve ainda quem os tenha atribuído à “imaginação” da mãe durante a gestação…

Pelo texto do folheto, escrito em forma de carta, e que obteve resposta, vemos como estes casos chamaram a atenção da Ciência, no contexto do movimento iluminista.

Também a literatura popular, dita de cordel, não dispensa a oportunidade da sua divulgação e, sobretudo, de pasmar com o insólito. É esta situação que terá originado este pequeno folheto de que damos notícia, de oito páginas, incluindo o frontispício, impresso em Lisboa, sem indicação de tipografia, mas “com todas as licenças necessárias”.

Sobre o autor, decerto morador na Vila, e que apenas assina com as iniciais A.J.R., não dispomos, de momento, de qualquer outro dado.

Recentemente foram publicados dois ensaios sobre esta temática, referindo ambos o caso de Castelo de Vide, que indicamos na bibliografia. Além do folheto, indicamos ainda os registos dos Livros de Baptizados e de Óbitos da Freguesia de Santa Maria da Devesa, referentes ao ano de 1757, depositados no Arquivo Distrital de Portalegre.



Bibliografia :
- A. J. R. - Noticia de hum caso acontecido em Castello de Vide Aos 24 de Março deste presente anno de 1757 Referido em huma Carta, que daquella Praça se mandou a esta idade, à qual se accrescentão algumas reflexoens Fisico-Historicas. Lisboa, 1757.

- Arquivo Distrital de Portalegre - Registo de Baptismo de Francisco [filho de Manuel Dias Junceiro e Ana Maria], Paróquia de Santa Maria, Concelho de Castelo de Vide. , 31 de Março de 1757, fl. 167.

- Arquivo Distrital de Portalegre - Registo de Óbito de Francisco [filho de Manuel Dias Junceiro e Ana Maria], Paróquia de Santa Maria, Concelho de Castelo de Vide. , 22 de Abril de 1757, fl. 22.

- COSTA, Palmira Fontes da, Introdução e Coordenação Editorial - O Corpo Insólito - Dissertações sobre monstros no Portugal do século XVIII. Porto : Porto Editora, 2005.

- RAMOS, Ana Margarida - Os Monstros na Literatura de Cordel Portuguesa do século XVIII. Lisboa : Edições Colibri, 2008.



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